Para 2020 está prevista a reabertura ao público da Nova Galeria Nacional (Neue Nationalgalerie), em Berlim, após quase 6 anos fechada para a realização de obras de restauro e atualização. Um dos últimos projetos do arquiteto Mies van der Rohe, seu único do pós-guerra realizado na Alemanha, foi aberta em 1968 e é dedicada a abrigar a arte do século XX. Após mais de quarenta anos de uso, o edifício foi objeto de um longo processo de conhecimento, projeto, planejamento e obra. Os trabalhos estão em pleno andamento, sob a coordenação de uns dos mais prestigiados escritórios de arquitetura na Europa, David Chipperfield Architects.
A vasta experiência adquirida pela firma em projetos para novos museus e renovações, sendo uma das mais significativas a intervenção no Novo Museu, na Ilha dos Museus, também em Berlim, deu-lhe a capacidade técnica para o enfrentamento do problema de maneira precisa, autoral e eficiente. Pela bagagem, a encomenda e a escolha do escritório pareceriam óbvias, não fosse o proprietário do imóvel o governo alemão e não existisse a necessidade de seguir o rito da contratação pública. O processo que levou o escritório David Chipperfield Architects a estar à frente do projeto e da obra da Nova Galeria Nacional, no entanto, está longe da tradicional concorrência para a licitação de projetos que se vê no Brasil, e vale ser explicado.
Tudo começou no ano de 2010 quando o governo alemão, proprietário do edifício, encomendou a elaboração de um meticuloso e amplo diagnóstico do edifício: desde as questões relacionadas à utilização, à conservação e principalmente à longevidade da Nova Galeria Nacional. O documento também buscou identificar todas as características fundamentais do prédio, sejam elas de ordem material ou projetual, que seriam cruciais para a sua compreensão e deveriam ser preservados. Nessa lista entram levantamento das particularidades do projeto original, detalhes de como foi a execução e como os materiais e arranjos se comportaram ao longo do tempo. Essa abordagem permitiria mais tarde o desenvolvimento do projeto de renovação garantindo, a priori, as características que lhe levaram ao status de bem patrimonial protegido desde 1995. O documento revelou o caráter da intervenção a ser proposta, as necessidades a serem atendidas e a partir daí os subsídios para direcionar que tipo de profissional deveria estar a frente do trabalho de intervenção.
O processo foi dividido em duas etapas, uma de análise de documentos e capacidade técnica do escritório, e outra da qualidade e adequação do profissional a ser contratado. Até aqui, nada muito original. A novidade resvala, no entanto, na maneira de encarar essas etapas e das tarefas a serem cumpridas. Em finais de 2011 começaram as discussões para definir os parâmetros entre o Serviço Federal de Engenharia e Regulamentação da Construção (Bundesamt für Bauwesen und Bauordnung – BBR), responsável pela contratação em nome do proprietário, e o órgão de preservação de Berlim (Landesdenkmalamt – LDA), responsável pela proteção cultural. De um lado, o escritório tinha que mostrar capacidade de levar adiante uma empreitada de tamanha envergadura, de outro, teria também de comprovar a habilidade para o tratamento de edifícios de valor patrimonial, equilibrando os interesses de seus interlocutores, conta Norbert Heuler, técnico do órgão de patrimônio de Berlim que esteve envolvido no processo desde o seu início.
Após o primeiro chamamento cinco firmas foram consideradas aptas para seguirem adiante: Brenne Architekten, HG Merz GmbH, Staab Architekten, o consórcio entre Petra und Paul Kahlfeldt Architekten com Kleihues + Kleihues, além de David Chipperfield Architects. Neste momento foram avaliados a qualificação dos integrantes da equipe concorrente e dois projetos de referência, indicados pelo próprio participante: em que medida resolviam problemas semelhantes ao do objeto da concorrência e apresentavam qualidade arquitetônica. Dentre o currículo desses escritórios estavam obras de renovação de porte como o já mencionado Novo Museu, na Ilha dos Museus, em Berlim, a Nova Galeria de Kassel, a Filarmônica, a Ópera do Estado Unter den Linden, ambas em Berlim e a sede da Bauhaus em Dessau.
Na primeira etapa, já se nota um tom muito mais focado na escolha de um projetista a partir de sua abordagem arquitetônica, e não meramente técnico-financeira. Entretanto, foi na segunda etapa da concorrência que esse foco foi trabalhado mais profundamente.
Nesse momento o preço a ser cobrado aparece pela primeira vez. Mas ele foi simplesmente um componente que valia pontos numa tabela, quanto mais se aproximasse ou se afastasse da estimativa do estado. O preço não era eliminatório. O concorrente precisava explicar o organograma da equipe e o fluxo organizacional das etapas de projeto, cada passo a ser tomado, como e por quem, para a resolução dos problemas, um verdadeiro plano de atividades. Cada equipe teve ao total 45 minutos para apresentar esses elementos diante de um júri formado por membros das duas entidades do estado e da direção do Museu.
Na segunda rodada, os concorrentes depararam-se com algumas tarefas a serem cumpridas. Numa exposição ao júri com duração de 20 minutos era necessário apresentar sua visão pessoal sobre a obra de Mies van der Rohe, e as referências presentes no seu próprio trabalho, bem como as representações dessas referências.
Em seguida, dois desafios projetuais, a serem solucionados pela equipe no local, em 45 minutos, e posteriormente apresentados ao júri. As equipes receberam todo o material necessário para o desafio: desenhos de plantas e cortes do edifício existente e material para executar croquis. Vale salientar que eram problemas reais que necessariamente deveriam ser resolvidos pelo projetista escolhido quando da entrega final do projeto, conflitos entre as demandas de uso e a situação espacial, levando em conta as especificidades da proteção do patrimônio.
A primeira tarefa era reorganizar o guarda-roupa no acesso, insuficiente para o afluxo de público. Ao mesmo tempo, era necessário integrá-lo com o vestíbulo no pavimento inferior, adaptado para receber grupos escolares, sem perder área técnica ou de infraestrutura. Essa tarefa requeria um domínio das circulações necessárias e do funcionamento do Museu, e tratava-se basicamente de um ajuste de layout, que foi resolvido a contento pelos participantes.
A segunda tarefa era uma questão antiga enfrentada pelo Museu, que em seus 40 anos de existência jamais fora solucionada de maneira eficiente. O projeto de Mies van der Rohe previu um jardim de esculturas conectado a uma das salas de exposição no pavimento inferior, assim como existia no MoMA de Nova Iorque, um espaço único de exposições. Em razão de problemas de acessibilidade, este espaço jamais pôde ser utilizado de forma plena. O desafio seria pensar numa solução levando em conta as especificidades do edifício como bem cultural e o clima.
Segundo Heuler, que também foi membro do júri, os candidatos apresentaram as mais diferentes e mirabolantes soluções para esse segundo problema. Com exceção da equipe de David Chipperfield Architects, que resolveu apresentar uma justificativa para não solucionar a questão: não se tratava de um problema exclusivamente arquitetônico, mas que requeria um esforço integrado com especialistas em climatização, e por isso, naquele momento, sem o apoio e as discussões interdisciplinares necessárias, o problema não poderia ser resolvido. Levou a concorrência.
Em Berlim, as temperaturas podem chegar a quase 40˚ no verão e a menos de 20˚ no inverno, sendo necessário um equilíbrio viável com as temperaturas interiores que precisam ser estáveis para as obras durante o ano todo. Essa transição sempre foi o ponto chave da questão. “Naquele momento, com uma equipe formada só por arquitetos e sem uma visão global do edifício, e com tão pouco tempo, não seria viável propor qualquer solução” contou o arquiteto Daniel Wendler, que atualmente coordena este projeto dentro da firma, lembrando da concorrência. O arquiteto explicou ainda que para se preparar, eles estudaram bastante a obra de Mies, bem como o edifício e todas as regulamentações que deveriam ser levadas em conta.
Em 2012 o projeto foi iniciado; em 2015 o Museu foi fechado e as obras começaram somente em 2016. Às vésperas do fechamento do museu para as obras, confirmando sua vocação para criar o fato, Chipperfield realiza uma instalação na grande galeria intitulada "Sticks and Stones", amplamente noticiada, inclusive pelo ArchDaily este portal, chamando atenção para o que estava por vir.
Entre o final da obra, prevista para 2019 e a reabertura, em 2020, existe toda uma estratégia de reocupação, para que o Museu esteja em perfeitas condições para o público.
Ironicamente, aquela questão da acessibilidade do jardim de esculturas, mesmo depois de vários estudos e dedicação, ainda não foi completamente resolvida. Foi realmente um tiro certeiro.
Lara Melo Souza é Arquiteta e Urbanista, e Mestre pela FAUUSP, com passagem pela UNAM, México. Funcionária de carreira da UPPH/ CONDEPHAAT, está no momento licenciada, e atua como pesquisadora visitante no Landesdenkmalamt Berlin, Alemanha, no âmbito do Programa de Cooperação da Chanceler Alemã da Fundação Alexander von Humboldt.